segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

RESENHA: FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes – o outro lado do mito.



            “Ainda vai chegar o dia de nos virem perguntar: quem foi a Chica da Silva, que viveu neste lugar?”[1] É com essa epígrafe de Cecília Meirelles – Romanceiro da Inconfidência – que Júnia Ferreira Furtado, historiadora, inicia a apresentação do seu livro aqui resenhado. Professora de História da Universidade Federal de Minas Gerais, Furtado é autora de diversas obras relacionadas à História do Brasil no período Setecentista, em especial sobre a região da Minas, tais como: “O livro da capa verde: a vida no Distrito Diamantino no período da Real Extração”; “Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio na s Minas setecentistas” e “Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do império ultramarino português”.
            A obra sobre Chica da Silva apresentou-se como um grande desafio para a autora, já que quebrar estereótipos construídos pelo imaginário e, sobremaneira, pela literatura, pela mídia, não constitui tarefa fácil. Furtado deixa claro, na obra, que o mito de Chica da Silva que ela, a partir de documentos oficiais, faz conhecer “pouco se parece com o mito divulgado pelo cinema e pela televisão”.[2] Sobre os documentos utilizados, a autora ressalva que, por terem sido usados documentos de cartórios, de igrejas, de irmandades, de processos – entre outros – os ditos oficiais não expressão julgamentos, mas sim fatos; e aqui coube à historiadora identificar, nas entrelinhas, emoções ou objetivos que proporcionaram a sua redação.
            Ao abordar a história de Chica da Silva, Júnia Furtado não só conta a história de uma escrava que “virou rainha” na região diamantífera, mas faz também uma profícua análise da trajetória de mulheres forras no mesmo período – século XVIII – e apresenta a possibilidade de se trabalhar sob outras perspectivas o papel da mulher escrava, forra ou mesmo branca na sociedade mineradora colonial.
            Furtado dividiu sua obra que virou Best seller em onze capítulos. Procurar-se-á, de maneira breve, explanar aqui os temas tratados em cada parte, é claro, sem a pretensão de abarcar todo o conteúdo da obra que é de leitura indispensável, na íntegra, para quem almeja compreender melhor a vida e a história da mulher do contratador João Fernandes de Oliveira, antes retratada como a extravagante e a sensual Chica da Silva.
            De maneira, deveras, poética a autora descreve a demarcação geográfica do distrito diamantino incidida no período da corrida aurífera e de diamantes e do processo de ocupação das Minas Gerais. O lugar de extração dos diamantes localizava-se “na região Nordeste das Minas Gerais, que correspondia à comarca do Serro Frio, uma das unidades administrativas em que a capitania fora dividida”.[3] A sede dessa comarca foi constituída onde atualmente é a cidade de Serro, antes Vila do Príncipe, próximo de onde é hoje a cidade de Diamantina. Tratava-se do Arraial do Tejuco, a cancha de Chica da Silva, o “espaço urbano” da região diamantífera.
Furtado descreve o processo de exploração das pedras preciosas e o controle da metrópole sobre o procedimento. Contudo, o ponto principal desse capítulo que é o primeiro, trata-se da descrição do Tejuco na perspectiva social. A sociedade da região dos diamantes era constituída por escravos, pardos e brancos – especialmente portugueses. E apesar de seus princípios terem por base o nascimento e a honra, havia certa mobilidade social. Esse ponto é importante porque Chica da Silva, mulata, ascendeu-se socialmente ao se tornar concubina do contratador João Fernandes de Oliveira. Como Chica, outros conseguiram a mobilidade social, como as mulatas, por meio do “concubinato com um homem branco, ou pelas vendas de tabuleiro e a prestação de pequenos serviços no arraial, como costura e lavagem de roupa, serviços de entrega e até prostituição”.[4]
O segundo e o terceiro capítulo se encontram, de alguma maneira, por tratarem da origem dos dois “personagens” que mais se destacam na história de Chica da Silva: a própria Francisca e o contratador João Fernandes de Oliveira. Furtado delineia a trajetória tanto da escrava como do desembargador até se estabelecerem no Tejuco e provavelmente se encontrarem.
Chica da Silva nasceu de mãe escrava – Maria da costa – e de homem branco, português – Antônio Caetano de Sá, entre 1731 e 1735. Depois de nascer em Milho Verde, na Freguesia da Vila do Príncipe, Francisca parda, como era chamada por um de seus donos, passou por mais de uma propriedade antes de conhecer o contratador de diamantes. Em Portugal, depois de deixar as Minas Gerais, aos treze anos, João Fernandes de Oliveira, com pai de mesmo nome, preparou-se para a carreira eclesiástica e não tendo seu processo de genere concluído, estudou direito canônico e civil. Com o estabelecimento do quarto contrato diamantino, João Fernandes de Oliveira foi enviado por seu pai para “tomar às rédeas” dos negócios na região diamantífera, em janeiro de 1753.
Os capítulos “Diamante Negro” e “Senhora do Tejuco”, igualmente instigantes, tratam do encontro, propriamente dito, com o contratador e da célere ascensão de Chica da Silva: de escrava à senhora de escravos. O ponto-chave dessa parte é o tratamento que a autora dá não só à “promoção” de Francisca, como também de outras escravas forras no distrito diamantino. Porém, Junia Furtado destaca uma peculiaridade de Chica sobre seu processo de alforria que se deu pouco depois de sua compra. A autora lembra que “alforriar um escravo logo após sua aquisição não era atitude freqüente entre os proprietários mineiros.” (...) “Entre as 23 forras que registraram seu testamento no arraial ao longo daquele século, apenas uma foi libertada do mesmo modo que Chica da Silva.”[5] Além disso, o texto traz uma análise detalhada sobre os bens da “personagem”, inclusive da existência de um plantel de escravos que lhe prestava serviços. De acordo com a pesquisa em apreço, por meio de dados do censo de domicílio de 1774, não só Chica da Silva, forra, tinha escravos. De acordo com os testamentos das mulheres forras daquela região, era comum às mulheres forras possuírem escravos, pois deles advinha seu sustento.
Entre os capítulos sexto e nono, Furtado enriquece a obra com minúcias acerca do processo de inserção social da concubina Chica da Silva sob a égide do desembargador João Fernandes. Para se manter como uma figura respeitável no distrito diamantino, o contratador construiu laços de amizade e de apadrinhamentos que o promoviam socialmente e o mantinham no topo da sociedade diamantífera, bem como da lides políticas do Reino. Desses laços que geravam sua ascensão e prestígio também era beneficiada Chica da Silva que deles desfrutava. Sobre essas relações sociais, a autora enfatiza a participação do contratador e, especialmente, de Chica da Silva nas principais irmandades do Tejuco.
Nesses capítulos também, Júnia Furtado destaca o papel de Chica da Silva, antes analfabeta, depois, ao lado João Fernandes, promotora da cultura local. A autora deu destaque para diversas peças que foram apresentadas no Tejuco sob o patrocínio deles, a quem a pesquisadora chamou de “Mecenas”. Além disso, os filhos do casal tiveram boa educação: os homens, depois de receberem a instrução inicial no Tejuco, partiram para o Reino para lá concluírem o processo educacional como os herdeiros de poderosos o faziam; já as meninas, todas foram enviadas para o colégio de Macaúbas, o melhor da capitania das Minas Gerais – “onde teriam garantia de uma vida devota e honrada.”[6]
 Ainda nessa parte, o texto realça a importância de João Fernandes para o crescimento astronômico na exploração de diamantes. Durante sua estada na região diamantífera, a produção cresceu vertiginosamente e a atuação do desembargador na luta contra a clandestinidade foi, deveras, salutar para que isso sobreviesse. Para resolver questões familiares e com o Reino, João Fernandes teve que partir para Portugal em 1770 de onde nunca mais voltaria. Com sua partida, observou-se uma considerável queda na extração de diamantes. Além disso, ficava no Tejuco Dona Francisca da Silva de Oliveira cujo companheiro nunca mais veria.
Nos dois últimos capítulos, Júnia Furtado, relata os “destinos” de Chica da Silva e do contratador, separados pelo Atlântico, até a morte de ambos. O desembargador morreu em 1779, em Portugal. A ex-escrava, senhora de plantel de escravos, morreu em 1796, “dona de ‘grossa’ casa”,[7] no Tejuco.  A autora assevera que

O reconhecimento social que alcançara foi demonstrado em seu sepultamento: Chica da Silva foi enterrada na tumba número 16, no corpo da igreja da Irmandade de São Francisco de Assis, que teoricamente congregava apenas a elite branca, merecedora do privilégio de dispor de todos os ritos e sacramentos funerários que distinguiam os irmãos.[8]

A descendência de Francisca da Silva de Oliveira e de João Fernandes de Oliveira viveu o privilégio promovido pela rica herança dos pais, mas muitas vezes o estigma da cor que os acompanhava causava grande desconforto. Numa sociedade em que o ser branco era relevante para o respeito e a aceitação pelo pares, “sua trajetória revela a tentativa de branqueamento como forma de se inserirem mais favoravelmente na sociedade preconceituosa que se instituía no Brasil”.[9]
Júnia Furtado fecha a obra com uma análise sobre a construção do mito Chica da Silva e com relatos sobre a sua “Memória histórica”. A autora protesta contra a criação de vários estereótipos da mulher (a partir de 1853, com Joaquim Felício dos Santos até a propagação da “estória” de Chica pela televisão e pelo cinema) que buscou por meio do concubinato sua inserção social e o controle pela própria vida. Chica da Silva não foi a única que usou desse mesmo expediente – outras mulheres, negras ou mulatas – buscaram sua integração à elite branca, objetivando, sempre, que fossem respeitadas, reconhecidas e benquistas.

Por Magda Rita R. de A. Duarte

[1] FURTADO. p. 17.
[2] FURTADO. p. 25.
[3] FURTADO. p. 29.
[4] FURTADO. p. 43.
[5] FURTADO. p. 105.
[6] FURTADO. p. 189.
[7] FURTADO. p. 245.
[8] FURTADO. p. 245.
[9] FURTADO. p. 246.

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