segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONCEITO DE LUGAR NO CONTEXTO DA REFORMA GREGORIANA

O estudo sobre o conflito entre o Papa Gregório VII e o Imperador Henrique IV, conhecido como a Querela das Investiduras faz emergir algumas curiosidades sobre aspectos relacionados ao conceito de Lugar.
            Grosso modo, a referida controvérsia, ocorrida no século XI, resultou da luta da Igreja por sua emancipação do poder temporal. Não foi esse conflito o único em que um pontífice e um imperador se enfrentaram. Contudo, Gregório VII foi um dos papas mais contumazes na busca pela libertação da Igreja da ingerência laica – tal era sua obstinação que a grande reforma principiada em Cluny no século X e que adentrou séculos posteriores ao seu pontificado recebeu o seu nome: Reforma Gregoriana.
            As propostas de Gregório VII, enfatizadas nos Dictatus Papae, foram ferrenhamente rechaçadas por Henrique IV, chefe temporal do Sacro Império Romano-Germânico. O Imperador resistia especialmente às proposições que ressaltavam o poder papal sobre toda a Cristandade, a capacidade pontifícia intransferível para nomear bispos e a competência para desligar do juramento de fidelidade aqueles que serviam a senhores iníquos.
            Neste trabalho, o objetivo não é descrever o conflito entre o Imperador e o Papa, mas sim entender o Lugar em que ocorreu um evento no contexto da Reforma e, particularmente, da Querela das Investiduras: a penitência de Henrique IV em Canossa – à espera do perdão do Papa Gregório VII, depois de ter sido excomungado. Para entender esses acontecimentos é preciso, antes de tudo conhecer a sociedade cristã no século XI.
A sociedade cristã medieval era, no alvorecer do segundo milênio, composta de maneira tripartite. Religiosos, guerreiros e servos camponeses eram pilares dessa sociedade em que as funções de uns e outros eram basilares para os grupos, reciprocamente. Essas relações entre as três ordens e, principalmente, a sua identificação como grupos separados, mas formadores de um só corpo, apareceram a partir do século IX, segundo Le Goff.[1] No entanto, foi no início do século XI que Adalbéron de Laon – bispo da Igreja – de maneira mais precisa, especificou as funções de cada ordem na sociedade que para ele compunha a casa de Deus.
Adalbéron, em Poème au Roi Robert, além de assinalar a composição tripartite da sociedade, partindo de sua relação com o rei capetíngio Roberto, o Piedoso, deixa transparecer como concebia as relações entre o poder laico e o poder temporal.
    
A casa de Deus é, portanto, tripla, ela que parece ser uma. Sobre esta terra, há os que oram, outros que combatem e outros que trabalham. Essas três [ordens] estão juntas e não se separam: a obra de duas repousa sobre o ofício de uma só, cada uma por sua vez traz alívio para o todo. Ela é, portanto, simples, esta tríplice união. Tanto que esta lei tem prevalecido e o mundo tem gozado paz.[2]

Nessa perspectiva, Le Goff analisa o trecho acima e o caracteriza como um “texto capital”, com “passagens extraordinárias”.[3] É nesse fragmento que se pode perceber o esboço da sociedade medieval, especificamente a feudal. Le Goff assinala que “o que importa aqui é a caracterização, que se tornará clássica, das três classes da sociedade feudal: os que oram (oratores), os que combatem (bellatores) e os que trabalham (laboratores)”.[4] Era a perspectiva da trifuncionalidade social: cada um no seu lugar dentro da sociedade onde as diferenças eram claras. Ademais, é importante apontar que, o satírico poema destacava essa perspectiva tripartite da sociedade que, independente do seu objetivo, justificava o modo de produção feudal.
De mais a mais, de acordo com Duby, Adalbéron deixou transparecer sua consciência sobre os acordos que se faziam naquele momento com a finalidade de um movimento reformista bem sucedido:

Celebremos, uma vez mais, a lucidez do velho prelado. Ele percebia claramente que, para levar a bom termo a reforma da Igreja – cujo fulgurante progresso não atingiria apenas a instituição eclesiástica, mas também o conjunto social – Roma e Cluny, o papa e os mosteiros isentos [da jurisdição episcopal], haviam se coligado contra a realeza e os bispos.[5]

No âmbito político, a sociedade medieval viveu, como outrora dito, várias batalhas – embora fossem conflitos mais “teóricos” do que de fato – entre o Sacerdócio e o Império na disputa pela alcunha de “cabeça” da Cristandade.
Qual era então o espaço dessa sociedade guiada pela perspectiva do sagrado? É difícil falar de Cidade – como um espaço urbano – na concepção hodierna, principalmente, porque o renascimento das cidades ocorreu a partir do século XII.[6] É complexo designar Cidade naquele período, principalmente, porque se tem hoje uma perspectiva de Lugar guiada pelo sentido da globalização. Na relação com o mundo, a concepção de espaço é local-global, enquanto antes era local-local.[7]  
Assim sendo, não se falará aqui do espaço urbano na acepção atual, mas tentar-se-á identificar o Lugar que a sociedade cristã medieval ocupava. Buscar-se-á, de maneira breve, entender quais eram as principais características da sociedade medieval do século XI e a sua dimensão local considerando alguns de seus distintos aspectos. Para entender o conceito de Lugar recorre-se a Milton Santos que ressalta:

No lugar – um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e instituições – cooperação e conflito são a base da vida em comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque a contiguidade é criadora de comunhão, a política se territorializa, com o confronto entre organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade.[8]

Dessa maneira, Canossa não era um Lugar especial para a penitência de Henrique IV ao pedir perdão e misericórdia a Gregório VII. Era apenas o espaço onde o poder espiritual se materializava na pessoa do papa – aquele era o território do poder descendente[9], naquele momento. Nesse contexto, a importância do Lugar relaciona-se a dois pontos importantes: à figura pontifícia e à questão da pena na sociedade medieval.
Primeiramente, a representatividade do Vigário de São Pedro para aquele grupo social era grande. A sociedade medieval do século XI era marcada pela fé cristã e pelas práticas religiosas cristãs que influenciavam todos os aspectos da convivência social. A exemplo disso, na política, a hierarquia estabelecida dependia dos princípios de governos que foram se desenvolvendo ao longo dos séculos: o poder vindo de Deus deveria sobrepor o poder dado por Deus aos homens – ou seja, a Cidade Celeste sobreposta à Cidade Terrena.
Desse modo, o Papa, visto como legítimo representante do poder divino, era a cabeça da instituição que deveria conduzir o rebanho – a cristandade – para a salvação eterna. Por conseguinte, no Lugar onde o Papa estivesse, estaria com ele tudo o que representava a Igreja. É, portanto, essencial lembrar as considerações de Santos sobre o espaço geográfico e a relação dos objetos que compõe esse espaço:

Sendo o espaço geográfico um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações, sua definição varia com as épocas, isto é, com a natureza dos objetos e a natureza das ações presentes em cada momento histórico. Já que a técnica é também social, pode-se lembrar que sistemas de objetos e sistemas de ações em conjunto constituem sistemas técnicos, cuja sucessão nos dá a história do espaço geográfico. Os objetos que constituem o espaço geográfico atual são intencionalmente concebidos para o exercício de certas finalidades, intencionalmente fabricados e intencionalmente localizados. A ordem espacial assim resultante é, também, intencional.[10]

Assim, no momento em que Henrique IV viu-se obrigado pelos seus príncipes a se reconciliar com Gregório VII, o pontífice estava em Canossa – e era lá, destarte, que estava a cabeça da Igreja e tudo o que ela representava para aquele grupo social. Ainda segundo Santos, “no plano global, as ações, mesmo ‘desterritorializadas’, constituem normas de uso dos sistemas localizados de objetos, enquanto no plano local, o território, em si mesmo, constitui uma norma para o exercício de ações”.[11]
A atitude do rei excomungado em busca do perdão do pontífice foi objeto de muitas crônicas da época e muitos historiadores descreveram a cena: o chefe temporal em trajes de penitente em frente ao castelo onde se encontrava o pontífice.[12] Foram três dias, sob inverno rigoroso, à espera da absolvição, da retirada do anátema.
Segundo Vauchez, a espiritualidade medieval era sustentada por três fundamentos: a descoberta do Cristo histórico, a valorização da vida moral e a importância dada aos ritos e aos gestos.[13] O ritual de penitência de Henrique IV tinha um significado especial para a sociedade medieval. O chefe temporal tinha sofrido a excomunhão – sentença prelatícia que tinha o poder de afastar qualquer cristão das relações com a Igreja e que o impedia de se viver em sociedade.[14] Henrique foi obrigado pelo seu grupo social a se penitenciar em busca do perdão.
Assim sendo, este ponto se converge com a questão da pena[15] para a cultura medieval do século XI. Naquele contexto, a penitência para o alcance da absolvição era preferível ao descaso dos seus pares, causado pela pena do anátema. De acordo com Beccaria,

(...) aquele que tem diante dos olhos um grande número de anos, ou mesmo a vida inteira que passar na escravidão e na dor, exposto ao desprezo dos seus concidadãos, dos quais fora um igual, escravo dessas leis pelas quais era protegido, faz uma comparação útil de todos os males, do êxito incerto do crime e do pouco tempo que terá para gozar.[16]

Ligados pelos laços de vassalagem – de acordo com sua região[17] – os reis medievais não podiam se deixar abater por um processo de excomunhão já que os seus iguais iriam rejeitá-lo. Ao ser excomungado, os laços de fidelidade vassálica eram desfeitos e perdidos. Nenhum cristão deveria servir a um monarca iníquo e era o papa a autoridade legítima e legal para desligá-lo de qualquer juramento de fidelidade – esse era o entendimento, principalmente depois da instituição dos Dictatus Papae por Gregório VII.
Essa era a sociedade das três ordens preconizada por Adalbéron de Laón e que se consolidou entre os séculos XI e XIII. Esse era o Lugar a que Henrique IV e Gregório VII pertenciam.


Por Magda Rita R. A. Duarte








[1] LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2005. p. 257.
[2] “La maison de Dieu est donc triple, elle que semble une. Ici-bas, les uns prient, d’autres combattent et d’autres travaillent. Ces trois sont ensemble et ne se séparent pas: aussi l’ouvrage de deux repose-t-il sur l’office d’um Seul, chacun à son tour apporte à tous le soulagement. Elle est donc simple cette loi prévalut le monde jouit de la paix.” LAON, Adalbéron. Poème au Roi Robert. Paris: Société D’Édition “Les Belles Lettres”, 1979. Trad. Claude Carozzi. p. 23.
[3] LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2005. p. 258.
[4] LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2005. p. 258.
[5] DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982. p. 167. A isenção de Cluny é mais bem explicada por Villoslada que aponta a imunidade dos mosteiros cluniacenses, tanto diante dos senhores temporais, quanto dos bispados. A dependência a Roma é direta, sem intermediários. Segundo esse autor, há registros, a partir do século XI, em documentos relativos ao censo anual, que tratava sobre tributação e domínios e direitos pontifícios sobre propriedades, bem como sobre instituições sob sua proteção – isso era um sinal da isenção dos mosteiros, da sua liberdade alcançada em relação aos nobres e aos bispos. VILLOSLADA, Ricardo García. Historia de la Iglesia Católica: Edad Media. V. 2. Madrid: BAC, 1953. p. 189.
[6] Para conhecer melhor o crescimento da cidade medieval, conferir LE GOFF, Jacques. O apogeu da cidade medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
[7] SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2006. p. 212. Aqui, Santos cita o filósofo Michel Serres ao destacar o espaço geográfico nas relações com o mundo.
[8] SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2006. p. 218.
[9] Para entender a concepção descendente e ascendente de poder conferir ULLMANN, Walter. Principios de Gobierno y Politica en la Edad Media. Barcelona: Biblioteca de Politica y Sociología – Revista de Occidente, 1983.
[10] SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2006. p. 226.
[11] SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2006. p. 225.
[12] LOYN, Henry R. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
[13] VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental: século VIII a XIII. Rio de Janeiro: Zahar. S. D.
[14] FRANCO JUNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001. p. 182.
[15] Tem-se ciência de que trabalhar a questão da pena na Idade Média não se resume a essas poucas linhas. No entanto optou-se pela brevidade em razão da natureza do trabalho.
[16] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Edição eletrônica Ridendo Castigat More: disponível em www.jahr.org. Acessado em 22 Dez 2009.
[17] Segundo Perry Anderson, ocorreram três diferentes processos de feudalização na Europa Ocidental. Na Germânia, o feudalismo aconteceu tardiamente em razão da tentativa de implantação de uma monarquia. Todavia, a Querela das Investiduras provocou indiretamente uma guerra civil que durou, aproximadamente, cinqüenta anos e esse conjunto de lutas impediu a consolidação do poder régio. A conseqüência foi o esfacelamento do que já havia se estabelecido e o fortalecimento da aristocracia germânica que reduziu o campesinato à servidão. ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 150 – 167.

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