segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

RESENHA: FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes – o outro lado do mito.



            “Ainda vai chegar o dia de nos virem perguntar: quem foi a Chica da Silva, que viveu neste lugar?”[1] É com essa epígrafe de Cecília Meirelles – Romanceiro da Inconfidência – que Júnia Ferreira Furtado, historiadora, inicia a apresentação do seu livro aqui resenhado. Professora de História da Universidade Federal de Minas Gerais, Furtado é autora de diversas obras relacionadas à História do Brasil no período Setecentista, em especial sobre a região da Minas, tais como: “O livro da capa verde: a vida no Distrito Diamantino no período da Real Extração”; “Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio na s Minas setecentistas” e “Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do império ultramarino português”.
            A obra sobre Chica da Silva apresentou-se como um grande desafio para a autora, já que quebrar estereótipos construídos pelo imaginário e, sobremaneira, pela literatura, pela mídia, não constitui tarefa fácil. Furtado deixa claro, na obra, que o mito de Chica da Silva que ela, a partir de documentos oficiais, faz conhecer “pouco se parece com o mito divulgado pelo cinema e pela televisão”.[2] Sobre os documentos utilizados, a autora ressalva que, por terem sido usados documentos de cartórios, de igrejas, de irmandades, de processos – entre outros – os ditos oficiais não expressão julgamentos, mas sim fatos; e aqui coube à historiadora identificar, nas entrelinhas, emoções ou objetivos que proporcionaram a sua redação.
            Ao abordar a história de Chica da Silva, Júnia Furtado não só conta a história de uma escrava que “virou rainha” na região diamantífera, mas faz também uma profícua análise da trajetória de mulheres forras no mesmo período – século XVIII – e apresenta a possibilidade de se trabalhar sob outras perspectivas o papel da mulher escrava, forra ou mesmo branca na sociedade mineradora colonial.
            Furtado dividiu sua obra que virou Best seller em onze capítulos. Procurar-se-á, de maneira breve, explanar aqui os temas tratados em cada parte, é claro, sem a pretensão de abarcar todo o conteúdo da obra que é de leitura indispensável, na íntegra, para quem almeja compreender melhor a vida e a história da mulher do contratador João Fernandes de Oliveira, antes retratada como a extravagante e a sensual Chica da Silva.
            De maneira, deveras, poética a autora descreve a demarcação geográfica do distrito diamantino incidida no período da corrida aurífera e de diamantes e do processo de ocupação das Minas Gerais. O lugar de extração dos diamantes localizava-se “na região Nordeste das Minas Gerais, que correspondia à comarca do Serro Frio, uma das unidades administrativas em que a capitania fora dividida”.[3] A sede dessa comarca foi constituída onde atualmente é a cidade de Serro, antes Vila do Príncipe, próximo de onde é hoje a cidade de Diamantina. Tratava-se do Arraial do Tejuco, a cancha de Chica da Silva, o “espaço urbano” da região diamantífera.
Furtado descreve o processo de exploração das pedras preciosas e o controle da metrópole sobre o procedimento. Contudo, o ponto principal desse capítulo que é o primeiro, trata-se da descrição do Tejuco na perspectiva social. A sociedade da região dos diamantes era constituída por escravos, pardos e brancos – especialmente portugueses. E apesar de seus princípios terem por base o nascimento e a honra, havia certa mobilidade social. Esse ponto é importante porque Chica da Silva, mulata, ascendeu-se socialmente ao se tornar concubina do contratador João Fernandes de Oliveira. Como Chica, outros conseguiram a mobilidade social, como as mulatas, por meio do “concubinato com um homem branco, ou pelas vendas de tabuleiro e a prestação de pequenos serviços no arraial, como costura e lavagem de roupa, serviços de entrega e até prostituição”.[4]
O segundo e o terceiro capítulo se encontram, de alguma maneira, por tratarem da origem dos dois “personagens” que mais se destacam na história de Chica da Silva: a própria Francisca e o contratador João Fernandes de Oliveira. Furtado delineia a trajetória tanto da escrava como do desembargador até se estabelecerem no Tejuco e provavelmente se encontrarem.
Chica da Silva nasceu de mãe escrava – Maria da costa – e de homem branco, português – Antônio Caetano de Sá, entre 1731 e 1735. Depois de nascer em Milho Verde, na Freguesia da Vila do Príncipe, Francisca parda, como era chamada por um de seus donos, passou por mais de uma propriedade antes de conhecer o contratador de diamantes. Em Portugal, depois de deixar as Minas Gerais, aos treze anos, João Fernandes de Oliveira, com pai de mesmo nome, preparou-se para a carreira eclesiástica e não tendo seu processo de genere concluído, estudou direito canônico e civil. Com o estabelecimento do quarto contrato diamantino, João Fernandes de Oliveira foi enviado por seu pai para “tomar às rédeas” dos negócios na região diamantífera, em janeiro de 1753.
Os capítulos “Diamante Negro” e “Senhora do Tejuco”, igualmente instigantes, tratam do encontro, propriamente dito, com o contratador e da célere ascensão de Chica da Silva: de escrava à senhora de escravos. O ponto-chave dessa parte é o tratamento que a autora dá não só à “promoção” de Francisca, como também de outras escravas forras no distrito diamantino. Porém, Junia Furtado destaca uma peculiaridade de Chica sobre seu processo de alforria que se deu pouco depois de sua compra. A autora lembra que “alforriar um escravo logo após sua aquisição não era atitude freqüente entre os proprietários mineiros.” (...) “Entre as 23 forras que registraram seu testamento no arraial ao longo daquele século, apenas uma foi libertada do mesmo modo que Chica da Silva.”[5] Além disso, o texto traz uma análise detalhada sobre os bens da “personagem”, inclusive da existência de um plantel de escravos que lhe prestava serviços. De acordo com a pesquisa em apreço, por meio de dados do censo de domicílio de 1774, não só Chica da Silva, forra, tinha escravos. De acordo com os testamentos das mulheres forras daquela região, era comum às mulheres forras possuírem escravos, pois deles advinha seu sustento.
Entre os capítulos sexto e nono, Furtado enriquece a obra com minúcias acerca do processo de inserção social da concubina Chica da Silva sob a égide do desembargador João Fernandes. Para se manter como uma figura respeitável no distrito diamantino, o contratador construiu laços de amizade e de apadrinhamentos que o promoviam socialmente e o mantinham no topo da sociedade diamantífera, bem como da lides políticas do Reino. Desses laços que geravam sua ascensão e prestígio também era beneficiada Chica da Silva que deles desfrutava. Sobre essas relações sociais, a autora enfatiza a participação do contratador e, especialmente, de Chica da Silva nas principais irmandades do Tejuco.
Nesses capítulos também, Júnia Furtado destaca o papel de Chica da Silva, antes analfabeta, depois, ao lado João Fernandes, promotora da cultura local. A autora deu destaque para diversas peças que foram apresentadas no Tejuco sob o patrocínio deles, a quem a pesquisadora chamou de “Mecenas”. Além disso, os filhos do casal tiveram boa educação: os homens, depois de receberem a instrução inicial no Tejuco, partiram para o Reino para lá concluírem o processo educacional como os herdeiros de poderosos o faziam; já as meninas, todas foram enviadas para o colégio de Macaúbas, o melhor da capitania das Minas Gerais – “onde teriam garantia de uma vida devota e honrada.”[6]
 Ainda nessa parte, o texto realça a importância de João Fernandes para o crescimento astronômico na exploração de diamantes. Durante sua estada na região diamantífera, a produção cresceu vertiginosamente e a atuação do desembargador na luta contra a clandestinidade foi, deveras, salutar para que isso sobreviesse. Para resolver questões familiares e com o Reino, João Fernandes teve que partir para Portugal em 1770 de onde nunca mais voltaria. Com sua partida, observou-se uma considerável queda na extração de diamantes. Além disso, ficava no Tejuco Dona Francisca da Silva de Oliveira cujo companheiro nunca mais veria.
Nos dois últimos capítulos, Júnia Furtado, relata os “destinos” de Chica da Silva e do contratador, separados pelo Atlântico, até a morte de ambos. O desembargador morreu em 1779, em Portugal. A ex-escrava, senhora de plantel de escravos, morreu em 1796, “dona de ‘grossa’ casa”,[7] no Tejuco.  A autora assevera que

O reconhecimento social que alcançara foi demonstrado em seu sepultamento: Chica da Silva foi enterrada na tumba número 16, no corpo da igreja da Irmandade de São Francisco de Assis, que teoricamente congregava apenas a elite branca, merecedora do privilégio de dispor de todos os ritos e sacramentos funerários que distinguiam os irmãos.[8]

A descendência de Francisca da Silva de Oliveira e de João Fernandes de Oliveira viveu o privilégio promovido pela rica herança dos pais, mas muitas vezes o estigma da cor que os acompanhava causava grande desconforto. Numa sociedade em que o ser branco era relevante para o respeito e a aceitação pelo pares, “sua trajetória revela a tentativa de branqueamento como forma de se inserirem mais favoravelmente na sociedade preconceituosa que se instituía no Brasil”.[9]
Júnia Furtado fecha a obra com uma análise sobre a construção do mito Chica da Silva e com relatos sobre a sua “Memória histórica”. A autora protesta contra a criação de vários estereótipos da mulher (a partir de 1853, com Joaquim Felício dos Santos até a propagação da “estória” de Chica pela televisão e pelo cinema) que buscou por meio do concubinato sua inserção social e o controle pela própria vida. Chica da Silva não foi a única que usou desse mesmo expediente – outras mulheres, negras ou mulatas – buscaram sua integração à elite branca, objetivando, sempre, que fossem respeitadas, reconhecidas e benquistas.

Por Magda Rita R. de A. Duarte

[1] FURTADO. p. 17.
[2] FURTADO. p. 25.
[3] FURTADO. p. 29.
[4] FURTADO. p. 43.
[5] FURTADO. p. 105.
[6] FURTADO. p. 189.
[7] FURTADO. p. 245.
[8] FURTADO. p. 245.
[9] FURTADO. p. 246.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Dica de Filme: "O Ponto de Mutação"


Austríaco, de Viena, Bernt Amadeus Capra mudou-se para os Estados Unidos – especificamente para Los Angeles – quando o exército de seu país quis recrutá-lo. Embora formado em Arquitetura, ou talvez por essa razão, Bernt Capra começou a trabalhar na Warner Bros com desenho. No entanto, foi quando retornou para a Europa que iniciou sua trajetória cinematográfica de fato. Anos mais tarde, voltou para a América e consolidou sua carreira como designer de produção em Hollywood, continuando também a dirigir suas produções. Desta vez, já casado e com um filho, Bernt passa a morar em Malibu onde reside até hoje.[1]
Filmado no castelo medieval do Mont Saint-Michel, na França, “O Ponto de Mutação” ou no nome original – Mindwalk – é um drama considerado intelectual de Bernt Capra. Baseado na obra “The Turning Point” de seu irmão, o físico Fritjof Capra. O filme, lançado em 1990, destaca um debate entre três pessoas de mundos profissionais bem distintos: um poeta, um político e uma cientista da Física. O diálogo gira em torno da percepção do mundo por essas pessoas e desemboca em questões sobre o tempo, sobre a evolução da ciência, bem como as conexões que formam a grande teia da vida.
O filme começa com a chegada de um político (Jack), candidato derrotado a presidente dos EUA, à França para um encontro com um amigo poeta (Tommaso) também americano, residente na Europa. Ao visitar um castelo medieval, os dois amigos se encontram com uma Sonia Hoffmann, uma ex-cientista que vive em conflito com a filha e desiludida da ciência tal como o é nos dias atuais.
A maior parte do filme, a cientista coloca seu posicionamento acerca de vários aspectos da evolução da ciência e da sua percepção da vida. O primeiro ponto destacado foi sobre a questão do tempo: o surgimento do relógio traz a primeira ruptura do homem com a natureza à medida que esse instrumento tornou-se o arquétipo do cosmos e, de algum modo, foi confundido com ele. Dessa maneira, surge então o tempo mecânico, e aqui a cientista enfatiza a importância do pensamento de Descartes e Newton. Descartes foi o pioneiro na perspectiva do mundo como um relógio, e essa chamada de visão mecanicista do mundo foi dominante por muito tempo. Sonia chama a atenção para a necessidade de mudança de percepção: o mundo evoluiu, a ciência evoluiu. O mundo já não deve ser mais visto como um relógio, como algo mecânico.
O segundo ponto abordado pela cientista foi sobre a grande rede. Ela cita o exemplo da superpopulação no mundo e especifica o problema da mortalidade infantil visto, muitas vezes, como um problema particular. Para a física, essa dificuldade faz parte de um sistema bem maior envolvendo economia, meio-ambiente, aspectos sociais, entre outros. Não há como acabar com a mortalidade infantil nos países antes chamados de Terceiro Mundo como um problema isolado. Tudo está integrado: há diversas conexões entre tudo o que acontece a todo instante, e em todo lugar. A cientista sugere mudança do todo e não das partes. Que sejam mudadas, segundo ela, as instituições, os ideais e os valores.  Nesse ponto, ela também faz uma crítica à medicina atual que prefere a intervenção que a prevenção. Sugere ainda que, se houvesse educação não se precisariam gastar milhões com tantas cirurgias: estas são mais caras que aquela. No entanto, o político Jack destaca que o interesse das classes dominantes prevalece e mesmo quando os políticos querem trabalhar em prol da educação e das mudanças, o empenho dos que detêm o poder econômico os supera. Mais a frente, os três dialogam sobre a responsabilidade das produções científicas. A cientista mostra-se pesarosa pelo seu invento que causa destruição, enquanto ela o tinha criado para o bem. Aqui, discutem que os cientistas descobrem as coisas e os políticos e que as usam; principalmente, porque fazer ciência é muito caro e quem paga é que decide o que fazer com o seu resultado – o seu uso positivo ou negativo para as pessoas e / ou para o planeta.
A cientista continua a explicar a grande rede a partir da teoria dos átomos – sob a perspectiva do tempo a partir do intervalo entre as partículas. Para Sonia, há uma conexão física entre tudo, bem como uma troca de energia entre as coisas e as pessoas. Nesse sentido, a vida seria feita de um sem número de probabilidades de conexões que estabeleceriam as relações inseparáveis por meio das quais a grande teia seria composta.
Ao continuar a tratar sobre a teoria dos sistemas, Sonia enfatiza a organização da vida, sendo que o um faz parte do todo e o todo depende do um e vice-versa – é a relação de interdependência na teia de relações. Para a física, essa dependência comum é um fato científico e a teia de relações, a cientista a vê como a essência de todas as coisas vivas. Ela continua explicando que a vida é auto-organizadora, segundo a teoria dos sistemas, e que os seres são autotranscendentes e acrescenta que “a dinâmica evolutiva básica não é a adaptação, é a criatividade”. Sonia afirma que para o bem do planeta e das pessoas, a busca obsessiva pelo crescimento precisa ser interrompida. Então, o político questiona qual seria o caminho para a mudança e por onde começar a mudar. A física explica que se as pessoas dessem importância às gerações futuras não colocariam a própria vida e a do planeta em risco. A ausência de preocupação com os que virão é que faz que as pessoas coloquem a vida em perigo. Para Sonia, a teoria de que o “saber é poder” é muito danosa porque diminui consideravelmente as possibilidades dos que ainda nascerão.
Nessa altura do diálogo, o poeta que pouco falou durante todo o diálogo, opina dizendo que tanto a teoria de sistemas ou do relógio, não faz diferença. Para ele, “a vida é muito mais do que qualquer teoria”. Para sentir o universo, é necessário que haja um trabalho interior e que essa conversa dos três o ajudou muito. Além disso, os dois questionam a cientista sobre o relacionamento com a filha e da dificuldade de se aplicar sua teoria. O político pede sua ajuda para seu crescimento nos EUA, mas Sonia não aceita e os três se despedem agradecendo pelo dia impressionante que tiveram.
A partir desse diálogo sobre questões de percepção, sobre o tempo mecânico, do intervalo e questões sobre energia, pode-se fazer uma breve análise dos rumos para os quais caminha a Didática nos dias atuais.  Não há como continuar com o modelo cartesiano de conhecimento fragmentado. Há uma crescente necessidade de um ensino sob perspectiva interdisciplinar.  Segundo Milton Santos,

(...) nas circunstâncias atuais, as técnicas parecem exatamente conduzir a algo que se opõe à vida, com a matematização da existência, e a algo que opõe ao pensamento abrangente, impondo um pensamento calculante, e com este todas as formas de utilitarismos, que conduzem a imediatismos, levando ao banimento da idéia de futuro. Quando, porém, consideramos as técnicas em conjunto com a história possível e não apenas a história existente, passamos a acreditar que outro mundo é viável. E não há intelectual que trabalhe sem idéia de futuro.[2]

Nesse sentido, essa idéia de Santos é convergente com a teoria da cientista fictícia Sonia sobre a preocupação com o futuro. Nessa perspectiva, é salutar que o processo de ensino e da pesquisa caminhe pensando nas gerações atuais em benefício das gerações futuras. Infelizmente, o modelo de conhecimento priorizado no século XXI está longe ainda de ser o ideal: interdisciplinar e de formação do aluno como ser humano e não como máquina. O que se vê hoje é o império do dinheiro e da formação de profissionais cada vez sabendo mais de um ponto minúsculo e menos do todo. O conhecimento do todo – a percepção do conjunto – é habitante de um mundo do ideal. Ainda se fala em mudar a educação (e como se fala!), mas não se pensa em mudar todos os aspectos que influenciam o processo de ensino e a pesquisa, mas sim somente a educação e si, ou só a pesquisa em si mesma. Os problemas que formam a grande teia social, da vida em sociedade são ignorados.
Enquanto não se compreender o homem, a mulher, as pessoas em geral, como seres humanos que estão ligados a tudo pela grande teia de relações e que é preciso muito mais do que resolver um problema para as boas mudanças se efetivarem, o mundo continuará o mesmo: o império dos interesses irá prevalecerá sempre. E as grandes possibilidades, como disse Milton Santos, oferecidas pelo mundo continuarão a ser apenas possibilidades e nunca chegarão a se efetivarem.[3]


[1] Informações do sítio eletrônico www.berntcapra.com. Acesso em 24 de Julho de 2009.
[2] SANTOS, Milton. O professor como intelectual na sociedade contemporânea. Conferência de Abertura do IX Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, realizado em Águas de Lindóia – SP, de 4 a 8 de maio de 1998.
[3] Resumo da obra cinematográfica (longa) de CAPRA, Bernt Amadeus. O Ponto de Mutação. 1990.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

UTILIDADE

A Associação Brasileira de Estudos Medievais - ABREM - é uma ótima ferramenta para quem está trilhando o caminho da História Medieval. No sítio, podem ser encontradas informações sobre as mais recentes publicações na área, sobre congressos, bem como biblioteca virtual, revistas e afins. Há também uma lista de links interessantes para quem quer navegar em assuntos ligados ao Medievo.
O endereço da ABREM: http://www.abrem.org.br/

Outro endereço que merece uma visita é o sítio do Professor Ricardo Costa da Universidade Federal do Espírito Santo. Amante dos estudos sobre a Idade Média, Costa mantém a página com artigos, textos extraídos de documentos medievais e informações sobre seu grupo de estudos na UFES. Os interessados em conhecer Raimundo Lúlio (1232 - 1316) encontrarão também muitas informações no sítio do Professor Ricardo.
Endereço: http://www.ricardocosta.com/


Por Magda Rita R. A. Duarte

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONCEITO DE LUGAR NO CONTEXTO DA REFORMA GREGORIANA

O estudo sobre o conflito entre o Papa Gregório VII e o Imperador Henrique IV, conhecido como a Querela das Investiduras faz emergir algumas curiosidades sobre aspectos relacionados ao conceito de Lugar.
            Grosso modo, a referida controvérsia, ocorrida no século XI, resultou da luta da Igreja por sua emancipação do poder temporal. Não foi esse conflito o único em que um pontífice e um imperador se enfrentaram. Contudo, Gregório VII foi um dos papas mais contumazes na busca pela libertação da Igreja da ingerência laica – tal era sua obstinação que a grande reforma principiada em Cluny no século X e que adentrou séculos posteriores ao seu pontificado recebeu o seu nome: Reforma Gregoriana.
            As propostas de Gregório VII, enfatizadas nos Dictatus Papae, foram ferrenhamente rechaçadas por Henrique IV, chefe temporal do Sacro Império Romano-Germânico. O Imperador resistia especialmente às proposições que ressaltavam o poder papal sobre toda a Cristandade, a capacidade pontifícia intransferível para nomear bispos e a competência para desligar do juramento de fidelidade aqueles que serviam a senhores iníquos.
            Neste trabalho, o objetivo não é descrever o conflito entre o Imperador e o Papa, mas sim entender o Lugar em que ocorreu um evento no contexto da Reforma e, particularmente, da Querela das Investiduras: a penitência de Henrique IV em Canossa – à espera do perdão do Papa Gregório VII, depois de ter sido excomungado. Para entender esses acontecimentos é preciso, antes de tudo conhecer a sociedade cristã no século XI.
A sociedade cristã medieval era, no alvorecer do segundo milênio, composta de maneira tripartite. Religiosos, guerreiros e servos camponeses eram pilares dessa sociedade em que as funções de uns e outros eram basilares para os grupos, reciprocamente. Essas relações entre as três ordens e, principalmente, a sua identificação como grupos separados, mas formadores de um só corpo, apareceram a partir do século IX, segundo Le Goff.[1] No entanto, foi no início do século XI que Adalbéron de Laon – bispo da Igreja – de maneira mais precisa, especificou as funções de cada ordem na sociedade que para ele compunha a casa de Deus.
Adalbéron, em Poème au Roi Robert, além de assinalar a composição tripartite da sociedade, partindo de sua relação com o rei capetíngio Roberto, o Piedoso, deixa transparecer como concebia as relações entre o poder laico e o poder temporal.
    
A casa de Deus é, portanto, tripla, ela que parece ser uma. Sobre esta terra, há os que oram, outros que combatem e outros que trabalham. Essas três [ordens] estão juntas e não se separam: a obra de duas repousa sobre o ofício de uma só, cada uma por sua vez traz alívio para o todo. Ela é, portanto, simples, esta tríplice união. Tanto que esta lei tem prevalecido e o mundo tem gozado paz.[2]

Nessa perspectiva, Le Goff analisa o trecho acima e o caracteriza como um “texto capital”, com “passagens extraordinárias”.[3] É nesse fragmento que se pode perceber o esboço da sociedade medieval, especificamente a feudal. Le Goff assinala que “o que importa aqui é a caracterização, que se tornará clássica, das três classes da sociedade feudal: os que oram (oratores), os que combatem (bellatores) e os que trabalham (laboratores)”.[4] Era a perspectiva da trifuncionalidade social: cada um no seu lugar dentro da sociedade onde as diferenças eram claras. Ademais, é importante apontar que, o satírico poema destacava essa perspectiva tripartite da sociedade que, independente do seu objetivo, justificava o modo de produção feudal.
De mais a mais, de acordo com Duby, Adalbéron deixou transparecer sua consciência sobre os acordos que se faziam naquele momento com a finalidade de um movimento reformista bem sucedido:

Celebremos, uma vez mais, a lucidez do velho prelado. Ele percebia claramente que, para levar a bom termo a reforma da Igreja – cujo fulgurante progresso não atingiria apenas a instituição eclesiástica, mas também o conjunto social – Roma e Cluny, o papa e os mosteiros isentos [da jurisdição episcopal], haviam se coligado contra a realeza e os bispos.[5]

No âmbito político, a sociedade medieval viveu, como outrora dito, várias batalhas – embora fossem conflitos mais “teóricos” do que de fato – entre o Sacerdócio e o Império na disputa pela alcunha de “cabeça” da Cristandade.
Qual era então o espaço dessa sociedade guiada pela perspectiva do sagrado? É difícil falar de Cidade – como um espaço urbano – na concepção hodierna, principalmente, porque o renascimento das cidades ocorreu a partir do século XII.[6] É complexo designar Cidade naquele período, principalmente, porque se tem hoje uma perspectiva de Lugar guiada pelo sentido da globalização. Na relação com o mundo, a concepção de espaço é local-global, enquanto antes era local-local.[7]  
Assim sendo, não se falará aqui do espaço urbano na acepção atual, mas tentar-se-á identificar o Lugar que a sociedade cristã medieval ocupava. Buscar-se-á, de maneira breve, entender quais eram as principais características da sociedade medieval do século XI e a sua dimensão local considerando alguns de seus distintos aspectos. Para entender o conceito de Lugar recorre-se a Milton Santos que ressalta:

No lugar – um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e instituições – cooperação e conflito são a base da vida em comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque a contiguidade é criadora de comunhão, a política se territorializa, com o confronto entre organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade.[8]

Dessa maneira, Canossa não era um Lugar especial para a penitência de Henrique IV ao pedir perdão e misericórdia a Gregório VII. Era apenas o espaço onde o poder espiritual se materializava na pessoa do papa – aquele era o território do poder descendente[9], naquele momento. Nesse contexto, a importância do Lugar relaciona-se a dois pontos importantes: à figura pontifícia e à questão da pena na sociedade medieval.
Primeiramente, a representatividade do Vigário de São Pedro para aquele grupo social era grande. A sociedade medieval do século XI era marcada pela fé cristã e pelas práticas religiosas cristãs que influenciavam todos os aspectos da convivência social. A exemplo disso, na política, a hierarquia estabelecida dependia dos princípios de governos que foram se desenvolvendo ao longo dos séculos: o poder vindo de Deus deveria sobrepor o poder dado por Deus aos homens – ou seja, a Cidade Celeste sobreposta à Cidade Terrena.
Desse modo, o Papa, visto como legítimo representante do poder divino, era a cabeça da instituição que deveria conduzir o rebanho – a cristandade – para a salvação eterna. Por conseguinte, no Lugar onde o Papa estivesse, estaria com ele tudo o que representava a Igreja. É, portanto, essencial lembrar as considerações de Santos sobre o espaço geográfico e a relação dos objetos que compõe esse espaço:

Sendo o espaço geográfico um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações, sua definição varia com as épocas, isto é, com a natureza dos objetos e a natureza das ações presentes em cada momento histórico. Já que a técnica é também social, pode-se lembrar que sistemas de objetos e sistemas de ações em conjunto constituem sistemas técnicos, cuja sucessão nos dá a história do espaço geográfico. Os objetos que constituem o espaço geográfico atual são intencionalmente concebidos para o exercício de certas finalidades, intencionalmente fabricados e intencionalmente localizados. A ordem espacial assim resultante é, também, intencional.[10]

Assim, no momento em que Henrique IV viu-se obrigado pelos seus príncipes a se reconciliar com Gregório VII, o pontífice estava em Canossa – e era lá, destarte, que estava a cabeça da Igreja e tudo o que ela representava para aquele grupo social. Ainda segundo Santos, “no plano global, as ações, mesmo ‘desterritorializadas’, constituem normas de uso dos sistemas localizados de objetos, enquanto no plano local, o território, em si mesmo, constitui uma norma para o exercício de ações”.[11]
A atitude do rei excomungado em busca do perdão do pontífice foi objeto de muitas crônicas da época e muitos historiadores descreveram a cena: o chefe temporal em trajes de penitente em frente ao castelo onde se encontrava o pontífice.[12] Foram três dias, sob inverno rigoroso, à espera da absolvição, da retirada do anátema.
Segundo Vauchez, a espiritualidade medieval era sustentada por três fundamentos: a descoberta do Cristo histórico, a valorização da vida moral e a importância dada aos ritos e aos gestos.[13] O ritual de penitência de Henrique IV tinha um significado especial para a sociedade medieval. O chefe temporal tinha sofrido a excomunhão – sentença prelatícia que tinha o poder de afastar qualquer cristão das relações com a Igreja e que o impedia de se viver em sociedade.[14] Henrique foi obrigado pelo seu grupo social a se penitenciar em busca do perdão.
Assim sendo, este ponto se converge com a questão da pena[15] para a cultura medieval do século XI. Naquele contexto, a penitência para o alcance da absolvição era preferível ao descaso dos seus pares, causado pela pena do anátema. De acordo com Beccaria,

(...) aquele que tem diante dos olhos um grande número de anos, ou mesmo a vida inteira que passar na escravidão e na dor, exposto ao desprezo dos seus concidadãos, dos quais fora um igual, escravo dessas leis pelas quais era protegido, faz uma comparação útil de todos os males, do êxito incerto do crime e do pouco tempo que terá para gozar.[16]

Ligados pelos laços de vassalagem – de acordo com sua região[17] – os reis medievais não podiam se deixar abater por um processo de excomunhão já que os seus iguais iriam rejeitá-lo. Ao ser excomungado, os laços de fidelidade vassálica eram desfeitos e perdidos. Nenhum cristão deveria servir a um monarca iníquo e era o papa a autoridade legítima e legal para desligá-lo de qualquer juramento de fidelidade – esse era o entendimento, principalmente depois da instituição dos Dictatus Papae por Gregório VII.
Essa era a sociedade das três ordens preconizada por Adalbéron de Laón e que se consolidou entre os séculos XI e XIII. Esse era o Lugar a que Henrique IV e Gregório VII pertenciam.


Por Magda Rita R. A. Duarte








[1] LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2005. p. 257.
[2] “La maison de Dieu est donc triple, elle que semble une. Ici-bas, les uns prient, d’autres combattent et d’autres travaillent. Ces trois sont ensemble et ne se séparent pas: aussi l’ouvrage de deux repose-t-il sur l’office d’um Seul, chacun à son tour apporte à tous le soulagement. Elle est donc simple cette loi prévalut le monde jouit de la paix.” LAON, Adalbéron. Poème au Roi Robert. Paris: Société D’Édition “Les Belles Lettres”, 1979. Trad. Claude Carozzi. p. 23.
[3] LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2005. p. 258.
[4] LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2005. p. 258.
[5] DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982. p. 167. A isenção de Cluny é mais bem explicada por Villoslada que aponta a imunidade dos mosteiros cluniacenses, tanto diante dos senhores temporais, quanto dos bispados. A dependência a Roma é direta, sem intermediários. Segundo esse autor, há registros, a partir do século XI, em documentos relativos ao censo anual, que tratava sobre tributação e domínios e direitos pontifícios sobre propriedades, bem como sobre instituições sob sua proteção – isso era um sinal da isenção dos mosteiros, da sua liberdade alcançada em relação aos nobres e aos bispos. VILLOSLADA, Ricardo García. Historia de la Iglesia Católica: Edad Media. V. 2. Madrid: BAC, 1953. p. 189.
[6] Para conhecer melhor o crescimento da cidade medieval, conferir LE GOFF, Jacques. O apogeu da cidade medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
[7] SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2006. p. 212. Aqui, Santos cita o filósofo Michel Serres ao destacar o espaço geográfico nas relações com o mundo.
[8] SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2006. p. 218.
[9] Para entender a concepção descendente e ascendente de poder conferir ULLMANN, Walter. Principios de Gobierno y Politica en la Edad Media. Barcelona: Biblioteca de Politica y Sociología – Revista de Occidente, 1983.
[10] SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2006. p. 226.
[11] SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2006. p. 225.
[12] LOYN, Henry R. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
[13] VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental: século VIII a XIII. Rio de Janeiro: Zahar. S. D.
[14] FRANCO JUNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001. p. 182.
[15] Tem-se ciência de que trabalhar a questão da pena na Idade Média não se resume a essas poucas linhas. No entanto optou-se pela brevidade em razão da natureza do trabalho.
[16] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Edição eletrônica Ridendo Castigat More: disponível em www.jahr.org. Acessado em 22 Dez 2009.
[17] Segundo Perry Anderson, ocorreram três diferentes processos de feudalização na Europa Ocidental. Na Germânia, o feudalismo aconteceu tardiamente em razão da tentativa de implantação de uma monarquia. Todavia, a Querela das Investiduras provocou indiretamente uma guerra civil que durou, aproximadamente, cinqüenta anos e esse conjunto de lutas impediu a consolidação do poder régio. A conseqüência foi o esfacelamento do que já havia se estabelecido e o fortalecimento da aristocracia germânica que reduziu o campesinato à servidão. ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 150 – 167.